domingo, 4 de outubro de 2015

A queda do muro (Parte 2)

Junho de 2015. Polêmica no grupo de mães do Facebook. Na imagem do post, retirada da página de um centro de atividades de Belo Horizonte, crianças brancas pintando o corpo com tinta preta. A legenda: "Essa semana a criançada experimentou ter uma cor diferente. Com tinta apropriada pintamos nossos corpinhos e passamos a tarde vivenciando ter a cor negra. Foi um experimento estético muito interessante". Experimento. Estético. Interessante.

Mães negras inconformadas. Algumas brancas fazem comentários considerados racistas, dizem ser apenas questão de opinião. A revolta toma conta. Assisto calada.
O muro é alto, minha visão é ruim. Não consigo enxergar o racismo das brancas, tampouco as feridas das negras. Apenas ouço vozes. Muitas. Palavras e termos desconhecidos ou pouco familiares para mim: privilégio; opressão; lugar de fala; blackface; apropriação cultural; dívida histórica; letramento racial. Vou pesquisar.

Os gritos das negras ecoam na minha cabeça. Estão tentando silenciá-las. Por que isso me incomoda tanto? Não sou negra. Não sou racista. Sou?
Não, claro que não. Tenho vários amigos negros. Não julgo ninguém pela cor da pele. Sou contra o sistema de cotas, pois acredito que todos têm a mesma capacidade e esse benefício causa mais exclusão. Acho turbante tão lindo... Jura que não posso usar? Fantasia de nega maluca também não pode? Nem se for para homenagear? Preciso estudar para entender. Vou pesquisar.

O muro caiu. O tombo foi feio. Vejo a luta mais de perto, embora ainda de uma distância segura. Dói reconhecer meus privilégios. Dói me descobrir racista, mesmo que não intencionalmente. Dói saber que não sou tão legal assim. Dói ver meu lugarzinho, outrora imaculado, completamente destruído. Mas nada se compara à dor dessas mulheres.
Quero ouvi-las. Quero o que o mundo as ouça. Não posso mais fingir que não tenho nada a ver com isso. Não posso permitir que meu filho cresça alienado como eu.

Leio, ouço, vejo, sinto. Sigo imersa no meu processo de desconstrução. A informação é a arma mais poderosa e com ela vou lutar. Aprendo um pouco todos os dias. Enfrento pequenas batalhas, quase sempre sozinha. Batalhas internas, principalmente. Não tenho mais medo de me tornar uma feminista chata que vive arrumando treta. Que venham as tretas!
A luta não para nunca. Tudo bem, estou preparada. Não, não estou. Percebo isso quando me vejo de mãos atadas sendo oprimida pelo machismo. Ah, o machismo! Ah, a opressão! Finalmente compreendo.

Criar um filho homem não machista, é possível? Como desviá-lo desse caminho, se todas as referências masculinas do seu convívio o levam para ele?
Criar um filho branco não racista é possível? Como desviá-lo desse caminho, se mundo inteiro o empurra para ele?
Até então, essas e outras questões nunca haviam passado pela minha cabeça. Isso só foi possível graças à queda do muro. Graças à minha queda.

A realidade é feia. Não tenho mais uma bela paisagem para contemplar. As coisas são como são, sem disfarce nem floreios. Por que eu desejaria continuar aqui embaixo?
Porque eu acredito na (re)construção de uma realidade mais bonita para o meu filho. Porque ele precisa ter noção dos seus privilégios. Porque eu não quero que vocês obriguem suas filhas a se comportar como "mocinhas" ou a alisar seus cabelos para que ele as aceite. É obrigação dele respeitá-las. É minha obrigação procurar meios de tornar isso possível.









A queda do muro (Parte 1)

"Prefiro manter-me calada a entrar em conflitos desnecessários. Uma coisa eu garanto: a vista daqui de cima (do muro) é mais bonita."

Assim encerrei o primeiro texto do blog, em fevereiro de 2014, quando a única bandeira que eu empunhava, muito timidamente, era a da maternidade ativa. Fugia de debates e tinha pavor de confusão. Ao menor sinal de fumaça, corria com medo de me queimar.
A vista lá do alto era realmente linda. Que lugar confortável, calmo e aconchegante! Por que alguém iria querer sair dali?

O mundo estava ficando muito chato e politicamente correto. O Facebook, cada dia mais sem graça. Tanta polêmica, tanto barraco a troco de nada... As redes sociais foram criadas para descontrair, não para deixar as pessoas mais estressadas. Que preguiça dessa gente que briga por tudo! Cadê a liberdade de expressão? Quanto radicalismo, aff!!!

Foi com esse pensamento que defendi a hashtag #SomosTodosMacacos, durante o episódio infeliz com o jogador Daniel Alves, no final de abril daquele ano, quando uma amiga (Raquel, um beijo!) disse que era uma baita hipocrisia e a carapuça me serviu perfeitamente. Como assim me chamar de hipócrita? Eu sou legal pra caramba, poxa! Vou deixar pra lá. Melhor não discutir com uma feminista de esquerda, elas se acham donas da verdade.

Nessa mesma época, comecei a participar de um grupo de mães onde a maioria adorava a cor vermelha, a Frida Kahlo, e usava a palavra machismo como resposta para quase todas as perguntas.
Apesar dos posts, no geral, serem relacionados à maternidade, vez ou outra algumas questões sociais e políticas eram levantadas. Elas falavam tão bonito... Queria entender tudo aquilo. Fui pesquisar.
Eu, uma pessoa neutra desde criancinha, comecei a sentir o muro tremer.

Eleições à vista. Começam as campanhas. Ai, que saco... Tem gente que leva a sério demais, né? Vontade de sumir do Facebook e só voltar em novembro. Não quero nem saber as propostas dos candidatos, tudo mentira mesmo. Não quero que a Dilma ganhe, precisamos de mudança. O concorrente direto é o Aécio? Não voto nele de jeito nenhum. Votarei no Eduardo Campos, a família dele é muito linda. Morreu, que tristeza... Vou no Eduardo Jorge, então. Curto essa vibe bicho-grilo.

Muita gente reclamando da falta de água. Uns dizem que a culpa é do Alckmin, outros que é de São Pedro. Quem será que tem razão? Vou pesquisar.
A culpa é do Sr. Governador. Mesmo. Sempre votei nele, logo, a culpa é minha também. Droga... Eu sou legal pra caramba, poxa! Ninguém vive sem água. O que será do futuro do meu filho sem água?
O muro tá balançando. Deu medo. Vou descer um pouquinho e já volto.

Como assim reelegeram o cara no primeiro turno com mais de 60% dos votos??? Além de água, falta informação também. Única explicação plausível para alguém compactuar com uma negligência desse porte. Vou ficar aqui embaixo mais um pouco.
Fim das eleições. Ufa! Vou subir de novo e acompanhar o barraco lá de cima. Bora preparar a pipoca e assistir o povo se matando porque a Dilma ganhou. Vou ficar bem quietinha no meu canto, não tenho nada a ver com isso.

Discurso de ódio rolando solto. Palavrões direcionados a uma mulher que poderia ser minha mãe. Tisc, tisc... Que vergonha! Estão perdendo a cabeça, o desespero tomou conta. Uns pedem impeachment, outros dizem que é golpe. Vou pesquisar.
É golpe mesmo. Como não votei nela, mas sei que se ela sair outro pior vai ocupar o lugar, me abstenho mais uma vez.

Chega de política. Assunto mais chato, credo. Fulana acabou de se separar, estava vivendo um relacionamento abusivo. Não sei exatamente do que se trata. Vou pesquisar.
Já vivi. Várias amigas vivem/viveram. Escapei, que bom. Pena que muitas não.
Empatia. Sororidade. Acho tudo muito lindo na teoria, mas não quero virar uma feminista chata que vive arrumando treta. Melhor continuar por aqui mesmo. Vou fazer mais pipoca.

Calor dos infernos, vamos para o parque. De vestido não dá, se eu precisar abaixar pra pegar a bola tô ferrada. O short é melhor. Curto demais, talvez. Foda-se.
Buzinas, assobios, olhares libidinosos e palavras nojentas. Estão me desrespeitando. Estão desrespeitando meu filho. Vocês gostariam que fizessem isso com a sua mãe? Com a sua irmã? Com a sua filha? Me deixem exibir minhas celulites em paz, porra!

Preciso ensinar meu filho a respeitar as mulheres desde cedo. Domingo à noite, tv ligada no programa Pânico. Ele quer ficar na sala com o papai. Me tranco com ele no quarto até dormir. Loja de brinquedos, escolhe um jogo de cozinha. Rosa, óbvio. Na embalagem a inscrição para meninas. Na fila do caixa, perguntam o nome "dela". Na rua, ele sorri para uma moça e alguém diz "Moleque esperto! Desde pequenininho já sabe paquerar!". Engulo seco. O muro está ruindo.

(CONTINUA)














sábado, 17 de maio de 2014

Pri, minha querida. Priminha querida.

Uma adolescente querendo ser adulta e uma pré-adolescente dividida entre as bonecas e as coisas de mocinha. Tínhamos 15 e 11 anos, respectivamente.
Eu era impaciente demais para lidar com a sua ingenuidade. Ela, possivelmente, sentia-se acuada diante da minha prepotência, tão típica da idade.
Naquela tarde, enquanto eu fazia as unhas da nossa avó, ela observava. Perguntei: "Quer que eu faça as suas também?". Ela assentiu.

Suas mãos já não eram tão pequeninas, mas ainda eram as mãos de uma criança. Lixei suas unhas, curtinhas e sem forma definida, uma a uma, cuidadosamente. Preparei o alicate e comecei a aparar suas cutículas. De repente, um susto: sangue! Praticamente todos os dedos estavam sangrando! Fiquei desesperada, me sentindo péssima por tê-la machucado...
Eu pedia desculpas repetidamente, ao mesmo tempo em que tentava estancar o sangramento com alguns pedaços de papel. Ela apenas ria e dizia, com a maior calma do mundo: "Não tá doendo, Nina. Eu juro...". Graças à sua tranquilidade, consegui finalizar a manicure. Suas mãozinhas ficaram lindas, como as de uma boneca.

É pouco provável que ela se lembre daquele dia. Eu nunca me esqueci... Talvez por ter ficado verdadeiramente apavorada com tanto sangue, ou, então, porque foi o contato mais íntimo que tivemos durante muito tempo.
Quatro anos pode não parecer uma diferença etária considerável, mas, estando no auge da adolescência, quatro anos é um abismo. Apesar de sermos relativamente próximas, morarmos na mesma cidade e nos encontrarmos com frequência, nossa relação nunca foi de amizade, do tipo de trocar confidências e tal. Era uma espécie de bem-querer impessoal.

Ela casou cedo e com pouco tempo de namoro, assim como eu. No entanto, ao contrário de mim, não quis esperar muito para constituir uma família.
Pouco mais de um ano após o casamento, já carregava uma linda menininha em seus braços. E mal havia se acostumado com o mundo das fraldas e mamadeiras, quando a primogênita estava com sete ou oito meses, foi abençoada com a segunda gravidez (dessa vez, completamente inesperada). Outra princesinha.

Linda, perfeita, risonha e quase não dava trabalho. Diferente da irmã, pegou o seio da mamãe logo de cara e não largou mais. Mamava, dormia e sorria. Um verdadeiro anjinho!
Tinha as mãos mais belas que um bebê recém-nascido poderia ter, nunca vi igual. Unhas alongadas e incrivelmente delineadas, que um dia poderiam servir de tela para todas as cores de esmalte do mundo.
Infelizmente, esse dia nunca chegou... Aquelas mãozinhas, esculpidas carinhosamente pela natureza, não se tornariam as mãos de uma mulher. Eram, de fato, as mãos de um anjinho.

Hoje somos duas adultas. Duas mães. Estamos, agora, caminhando lado a lado, numa mesma direção. Isso deveria facilitar um pouco as coisas... Mas não. De alguma forma, o abismo ainda existe.
Queria ter conseguido encontrar as palavras certas no momento em que mais precisou. Queria ter sabido exatamente o que fazer. Tudo o que consegui foi abraçá-la.
Às vezes me pergunto se foi suficiente. Se, através daquele abraço, fui capaz de expressar o que estava sentindo.

Dor. Muita dor. Não apenas a dor da perda, mas a dor pela dor de quem amamos. Doeu demais presenciar tamanho sofrimento, e doeu mais ainda não poder fazer absolutamente nada para amenizá-lo.
Compaixão. Se, naquela ocasião, me fosse concedido um único desejo, esse desejo seria livrá-la daquele pesadelo. Daria tudo, tudo, tudo para que não tivesse que passar por isso.
Empatia. Poderia ser o meu filho... Poderia ser eu no seu lugar. No pior lugar que um pai ou uma mãe poderiam estar.

Todos seguimos com nossas vidas desde então. As pessoas tendem a se unir perante uma tragédia, e foi o que aconteceu. Criamos uma barreira de amor para protegê-la, embora conscientes de que contra a dor não há proteção.
O assunto ficou adormecido (esquecido, jamais). Nunca conversamos a respeito, por essa razão, nunca disse a ela o que gostaria. Ainda tenho medo de machucá-la, principalmente com as lembranças.
Espero apenas que ela tenha a certeza de que sempre estive e sempre estarei aqui. E que eu ainda me preocupo com suas feridas, mesmo ela não demonstrando que está doendo.

No meu coração, ela ainda é uma menininha.